A Metamorfose Silenciosa: Ansiedade Digital e Gregor Samsa

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, em vez de se apavorar com sua nova e pavorosa condição existencial, seu primeiro pensamento lúcido foi para o despertador. Já passava das seis e meia, o trem das cinco já havia partido, e o gerente da firma certamente estaria a caminho para cobrar satisfações. Eis a primeira e mais fina ironia da modernidade: pode-se perder a forma humana, mas jamais se pode perder a hora. A verdadeira monstruosidade, ao que parece, não é ter o ventre marrom dividido por nervuras, mas a possibilidade de uma mancha no histórico de cinco anos de serviço sem uma única ausência.

Gregor, em sua nova casca, era o funcionário exemplar. Sua angústia não era ser um bicho, mas ser um bicho improdutivo. Sua mente corria para justificar a ausência, arquitetar uma desculpa, aplacar a ira do sistema que ele servia. “Que profissão cansativa eu escolhi”, pensou, não por ela o ter transformado num inseto, mas pela canseira das viagens e a preocupação com os horários. Karl Marx e Friedrich Engels, quase setenta anos antes, já haviam diagnosticado essa doença com uma precisão cirúrgica no Manifesto do Partido Comunista. Eles explicaram como a burguesia “despojou de sua auréola toda ocupação até então venerada”, transformando médicos, advogados e poetas em “seus servidores assalariados”. Gregor, o caixeiro-viajante, era a prova viva, ou melhor, a prova-inseto dessa tese. Sua humanidade era um mero pré-requisito contratual, e no momento em que seu corpo deixou de cumprir as especificações para o trabalho, sua anulação como pessoa foi imediata.

A chegada do gerente da firma confirma a suspeita. Ele não pergunta: “Gregor, você está bem? Sofreu um terrível acidente existencial?”. Não, ele age como a personificação do capital, perplexo não com o sofrimento, mas com a interrupção do fluxo de trabalho. A sua preocupação é imediata e puramente profissional, acusando Gregor de faltar “aos seus deveres profissionais de modo verdadeiramente escandaloso.” A suspeita, como ele mesmo revela, recai imediatamente sobre a honra dos negócios, sobre “o dinheiro que lhe foi confiado recentemente”. O gerente chega a mencionar que quase empenhou sua “palavra de honra” para defender Gregor, uma declaração que não revela compaixão, mas sim o inconveniente burocrático que a “incompreensível obstinação” do funcionário agora lhe causa. O discurso se completa com uma ameaça direta (“E seu emprego está longe de ser o mais seguro”) e uma análise de performance que reduz toda a existência de Gregor a uma única métrica: “não existe nem pode existir uma estação para não fazer negócio nenhum”. Gregor não é um homem doente; é um ativo de “desempenho… muito insatisfatório”, uma peça defeituosa que, com suas “estranhas extravagâncias”, está sabotando a máquina. A família, ao observar e absorver essa lógica, revela-se um microcosmo dela, preparando o terreno para tratar seu próprio membro da mesma forma.

O Manifesto já alertava que a burguesia “arrancou a máscara sentimental das relações familiares, e as reduziu à mera relação monetária”. Enquanto Gregor era o provedor, o arrimo financeiro, ele era tolerado e até amado. Quando se torna um fardo, a máscara cai. Sua irmã, que no início o trata com algum cuidado, ao fim decreta a sentença final, com uma lógica empresarial impecável: “precisamos nos livrar dele”. “Quando já se tem de trabalhar tão pesado, como nós, não é possível suportar em casa mais esse eterno tormento”. A sobrevivência econômica da unidade familiar exige a expulsão do membro improdutivo. É a “luta de classes” dentro do lar.

A suprema ironia da obra é que, ao proferir essa sentença, Grete não apenas condena o irmão, mas sela seu próprio destino como a próxima peça a ser utilizada pelo sistema familiar. A cena final no bonde é a prova disso. Após o alívio da morte de Gregor, os pais observam a filha e ocorre-lhes, “quase que simultaneamente”, que ela “havia florescido em uma jovem bonita e opulenta”. O olhar deles não é de puro afeto, mas de avaliação. As palavras “bonita” e “opulenta” não descrevem apenas uma filha amada, mas um ativo valioso. Imediatamente, eles concluem que “já era tempo de procurar um bom marido para ela”. Nesse contexto, o “bom marido” não é uma promessa de felicidade romântica, mas a próxima solução econômica da família, o novo provedor que garantirá a estabilidade que Gregor antes fornecia. Grete, que se libertou da tarefa de cuidar do “monstro”, agora será a moeda de troca para assegurar o futuro dos pais. Sua imagem final, ao se levantar e espreguiçar “o corpo jovem”, é de uma tragédia inconsciente. Para si mesma, ela sente a liberdade e a vitalidade da juventude; para seus pais e para a lógica do sistema, ela está apenas exibindo a qualidade do novo produto a ser levado ao mercado. O ciclo não se quebrou com a morte de Gregor. A máquina familiar, livre da engrenagem quebrada, imediatamente identifica a próxima peça para garantir sua contínua operação. Grete, sem perceber, está prestes a herdar o fardo de Gregor, apenas sob uma nova forma.

Essa lógica brutal de descarte, onde o valor humano é medido pela utilidade, não ficou confinada à ficção vienense do início do século XX. Pelo contrário, ela se aperfeiçoou, tornando-se mais sutil e internalizada. E assim chegamos aos tempos contemporâneos, onde, com um misto de alívio e decepção, percebemos que progredimos. Já não precisamos da grotesca e barulhenta transformação de Kafka para nos tornarmos insetos. Nossa metamorfose é silenciosa, digital e assustadoramente voluntária. Gregor se preocupava com o gerente; nós nos preocupamos com a curadoria do nosso “personal branding” em feeds infinitos, com a otimização de nossa performance por meio de aplicativos e com as métricas de engajamento que ditam nosso valor social. O chefe de Gregor precisou ir até sua casa; os nossos moram em nossos bolsos, vibrando com e-mails às dez da noite e notificações antes mesmo de o despertador tocar.

A “profissão cansativa” que se encerrava com a chegada em casa hoje se espalha por todos os cantos da vida, transformando o lazer em “networking” e o descanso em “preparação para a próxima jornada”. A família não precisa mais nos trancar no quarto quando nos tornamos um fardo; a sociedade simplesmente nos torna invisíveis. Somos “silenciados” ou “deixamos de seguir” se nossa performance social decai. Se a exploração do trabalhador, nas palavras do O Manifesto, terminava quando ele “recebe seu salário em dinheiro, ele é então saqueado por outros setores da burguesia: o proprietário do imóvel, o dono da loja, o agiota etc.”. Hoje, somos saqueados por nós mesmos, pagando com nossa ansiedade e nosso sono por mais um dia de relevância no grande mercado da autoexposição.

Ao fim, a condição de Gregor Samsa parece quase digna, um horror honesto e palpável. Sua casca de inseto era um protesto físico, uma recusa corporal a continuar no trem das cinco. Nossa desumanização é mais sutil, envolta em uma interface amigável e na promessa de autorrealização. A metamorfose se completou de forma tão perfeita, distribuída em doses diárias de otimização, que nem sequer notamos a perda da forma humana, apenas o cansaço inexplicável ao acordar de sonhos intranquilos.

A Metamorfose: DIE VERWANDLUNG

O caixeiro-viajante Gregor acorda metamorfoseado em um enorme inseto e percebe que tudo mudou e não só em sua vida, mas no mundo. Ele, então, acompanha as reações de sua família ao perceberem o estranho ser em que ele se tornou. E, enquanto luta para se manter vivo, reflete sobre o comportamento de seus pais, de sua irmã e sobre a sua nova vida.

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