Heidegger e a Pressa: O Esquecimento do Ser na Modernidade
A Cacofonia da Modernidade Acelerada
Vivemos na era do cronómetro invisível. O som que rege a nossa existência não é o do sino da igreja marcando as horas para a comunidade, nem o do ciclo natural do sol, mas o zumbido incessante de notificações, o tique-taque mental das listas de tarefas e a pressão silenciosa para otimizar cada segundo. A modernidade tardia, com sua arquitetura urbana vertical, suas autoestradas de informação digital e sua economia da atenção, instituiu a pressa não como um estado ocasional, mas como a condição fundamental da vida. Estamos imersos num turbilhão de produtividade, consumo e informação que nos impulsiona para a frente, sempre para a próxima meta, o próximo like, o próximo projeto. O futuro devora o presente, e o passado torna-se um arquivo obsoleto a ser rapidamente esquecido.
Neste cenário de aceleração contínua, uma pergunta emerge com uma força quase existencial, embora raramente tenhamos tempo para formulá-la: o que perdemos ao viver correndo? À primeira vista, a resposta parece óbvia: perdemos a calma, a saúde mental, o tempo com quem amamos. Contudo, essa resposta, embora verdadeira, permanece na superfície de um problema muito mais profundo, um problema de ordem ontológica. A pressa não é apenas um mau hábito ou um sintoma de má gestão do tempo; ela é a manifestação de uma estrutura de existência que nos aliena da própria essência do que significa ser.
É aqui que o pensamento de Martin Heidegger, um dos filósofos mais complexos e influentes do século XX, revela a sua assustadora pertinência. Décadas antes da invenção da internet ou das redes sociais, Heidegger diagnosticou a doença fundamental da nossa era: o “esquecimento do Ser” (Seinsvergessenheit). A sua filosofia não é um manual de autoajuda para uma vida mais lenta, mas uma crítica radical ao modo como a civilização ocidental, especialmente na sua fase técnica e moderna, se afastou da pergunta mais fundamental de todas, a pergunta pelo sentido do Ser. Ao mergulharmos na vida apressada e instrumentalizada, não perdemos apenas momentos de paz; perdemos o contacto com a nossa própria existência, com o mistério de estarmos aqui, agora, no mundo. Este ensaio propõe-se a desdobrar como a pressa moderna é um sintoma agudo desse esquecimento e como a filosofia de Heidegger nos oferece ferramentas cruciais para compreender e, talvez, resistir a essa condição.

A Pergunta que Deixamos de Fazer
Para compreender a crítica de Heidegger, é preciso retornar ao ponto de partida da sua obra-prima, Ser e Tempo (1927). O livro abre com uma constatação desconcertante: a pergunta mais básica e universal – “o que significa ser?” – caiu no esquecimento. Nós lidamos constantemente com entes (uma árvore, um computador, outra pessoa, nós mesmos), mas raramente paramos para pensar no que unifica todos eles: o facto de que eles são. O que é o próprio Ser, que permite que qualquer coisa venha a existir?
Heidegger argumenta que há um ente particular que tem uma relação privilegiada com esta pergunta: o ser humano. Ele cunha um termo específico para este ente: Dasein, que se traduz literalmente como “ser-aí”. O Dasein não é simplesmente um objeto no mundo, como uma pedra ou uma cadeira. O Dasein é o ser para quem o seu próprio ser está “em jogo”. Nós não apenas existimos; nós existimos compreendendo a nossa existência, preocupando-nos com ela, projetando-a para o futuro. Somos, por natureza, seres que se questionam sobre o sentido da sua própria vida. Ser humano é ser uma abertura para a questão do Ser.
No entanto, na maior parte do tempo, fugimos desta questão. O Dasein, na sua existência quotidiana, encontra-se “caído” (Verfallen) no mundo. Estamos absorvidos pelas nossas ocupações, pelas ferramentas que usamos, pelas relações sociais que mantemos. Esta imersão no quotidiano não é, em si, negativa; é a nossa condição primária de “ser-no-mundo”. O problema surge quando esta imersão se torna total. A pressa da vida moderna é a intensificação máxima desta “queda”. O fluxo constante de tarefas, e-mails, reuniões e estímulos digitais cria uma teia de ocupações que preenche cada fenda do nosso tempo. Nesta condição, o Dasein perde-se nas coisas a fazer, nos entes que manipula, e esquece-se de si mesmo como o “aí” do Ser. A preocupação com “o que fazer a seguir?” sufoca a pergunta fundamental sobre “o que significa ser?”. A pressa é, portanto, um mecanismo de distração ontológica.
O Esquecimento do Ser
Heidegger denuncia que este esquecimento não é um fenómeno exclusivamente moderno, mas uma tendência que atravessa toda a história da filosofia ocidental desde Platão. A metafísica tradicional, ao buscar a essência das coisas em ideias eternas ou numa substância imutável, acabou por tratar o Ser como um super-ente, como a coisa mais geral e vazia de todas, esquecendo a sua natureza dinâmica, temporal e reveladora.
Na modernidade, porém, este esquecimento deixa de ser um problema de especialistas em filosofia e torna-se a estrutura dominante da nossa civilização. Com o advento da ciência moderna, da Revolução Industrial e do capitalismo, o mundo e os seus habitantes passaram a ser vistos predominantemente através de uma lente instrumental e calculista. A natureza transforma-se em recurso natural, o animal em fonte de proteína, a terra em ativo imobiliário. E o ser humano? O ser humano é reduzido a uma função, a um recurso. Ele é “mão de obra” no sistema produtivo, “consumidor” no mercado, “usuário” nas plataformas digitais, “eleitor” no sistema político.
Em cada uma destas designações, o que se perde é a totalidade do Dasein. Uma pessoa não é apenas a sua capacidade de trabalho ou o seu poder de compra. No entanto, a lógica da modernidade apressada exige essa redução. Para que o sistema funcione de forma eficiente, as pessoas devem ser previsíveis, quantificáveis e intercambiáveis. A pressa serve perfeitamente a este propósito: não há tempo para a profundidade, para a ambiguidade, para a contemplação da própria existência. Vivemos imersos em metas, métricas de desempenho e otimização. O nosso valor é medido pela nossa produtividade, pela nossa capacidade de realizar mais em menos tempo. Nesta lógica, o Ser não é apenas esquecido; ele é ativamente suprimido por ser considerado inútil, ineficiente e, portanto, irrelevante.

A Tirania do Tempo Acelerado
A experiência da pressa não é meramente subjetiva ou psicológica. O sociólogo alemão Hartmut Rosa, em diálogo profundo com a tradição crítica que inclui Heidegger, argumenta que vivemos numa era de “aceleração social”. Esta aceleração manifesta-se em três níveis: a aceleração técnica (transportes, comunicação), a aceleração da mudança social (modos de vida, família, trabalho) e a aceleração do ritmo de vida (a sensação de falta de tempo apesar dos ganhos de eficiência tecnológica).
A cultura da performance é o motor desta aceleração. A máxima “produzir mais em menos tempo” colonizou todas as esferas da vida. O trabalho invade o espaço doméstico através de dispositivos conectados; o lazer torna-se uma oportunidade para “otimizar” competências ou construir “capital social”; até o descanso é mercantilizado em aplicações de meditação que prometem “recarregar” a nossa produtividade. O tempo deixa de ser um horizonte de possibilidades existenciais e transforma-se num recurso escasso a ser gerido e explorado. Ele é colonizado pelo “fazer” e pelo “útil”.
Os exemplos são omnipresentes e quotidianos. As redes sociais, com o seu scroll infinito, criam um fluxo contínuo de micro-estímulos que fragmentam a nossa atenção e nos mantêm num estado de perpétua agitação, com medo de “perder algo” (Fear of Missing Out). A prática da multitarefa, glorificada como um sinal de eficiência, é na verdade um sintoma da nossa incapacidade de nos dedicarmos plenamente a uma única coisa, de estarmos verdadeiramente presentes. As jornadas de trabalho exaustivas, combinadas com a pressão para estar sempre disponível, transformam a vida numa corrida sem linha de chegada. Nesta corrida, a contemplação, o tédio e o silêncio – condições essenciais para que a pergunta pelo Ser possa emergir – são vistos como falhas no sistema, como tempo desperdiçado.
A Fuga no Impessoal
Heidegger oferece uma distinção crucial para compreender a nossa resposta a esta condição: a diferença entre uma existência autêntica (Eigentlichkeit) e uma inautêntica (Uneigentlichkeit). Viver de modo inautêntico é o nosso modo padrão. É viver dissolvido no “se impessoal” (das Man), no “eles”. Fazemos as coisas porque “é assim que se faz”, pensamos o que “se pensa”, desejamos o que “se deseja”. O das Man é a voz anónima da multidão, das convenções sociais, das tendências. Ele oferece conforto e alivia-nos da responsabilidade de tomar as nossas próprias decisões.
A pressa quotidiana é o terreno fértil para a inautenticidade. Quando corremos de uma tarefa para outra, não temos tempo para questionar por que estamos a fazer o que fazemos. Simplesmente reagimos aos estímulos, seguimos o fluxo, cumprimos as expectativas. Vivemos como “todo o mundo”, sem uma reflexão genuína sobre o nosso próprio caminho.
A possibilidade da autenticidade, para Heidegger, surge de uma experiência fundamental: a angústia (Angst). A angústia não é o medo de algo específico, mas um sentimento profundo de estranheza perante o mundo e a constatação da nossa própria finitude. É a confrontação com o facto de que somos “seres-para-a-morte” (Sein-zum-Tode). A consciência de que o nosso tempo é limitado pode arrancar-nos da tranquilidade do “se impessoal” e forçar-nos a assumir a responsabilidade pela nossa própria existência. A autenticidade é, portanto, assumir a nossa temporalidade de forma consciente. É compreender que o nosso tempo não é uma linha infinita de momentos a serem preenchidos, mas o horizonte finito dentro do qual as nossas possibilidades se desdobram. Viver autenticamente é escolher as nossas possibilidades a partir da consciência da nossa finitude, em vez de nos deixarmos levar pelas distrações do quotidiano. A pressa, neste sentido, é uma fuga da angústia, uma tentativa desesperada de preencher o tempo para não ter de encarar o seu fim.

O Mundo como Estoque
Num ensaio posterior, “A Questão da Técnica”, Heidegger aprofunda a sua análise da modernidade. Para ele, a essência da tecnologia moderna não é simplesmente o conjunto de máquinas e dispositivos, mas um modo específico de desvelar o mundo, que ele chama de Gestell (traduzido como “armação” ou “composição”). O Gestell é uma provocação que força a natureza e o próprio ser humano a revelarem-se como um “estoque de recursos” (Bestand), disponíveis para serem extraídos, processados, armazenados e distribuídos com a máxima eficiência.
Um rio, sob o olhar da técnica moderna, não é primeiramente uma paisagem ou um ecossistema; é uma fonte de energia hidrelétrica. Uma floresta é um estoque de madeira. O ser humano, nesta lógica implacável, também é enquadrado como um recurso. O nosso tempo é um recurso para a produção; a nossa atenção é um recurso para a publicidade; os nossos dados pessoais são um recurso para os algoritmos. A pressa está intrinsecamente ligada a este domínio técnico. Tudo deve ser rápido, eficiente, otimizado e controlável, porque a lógica do estoque não tolera o desperdício, a lentidão ou a inatividade. A velocidade torna-se o critério supremo de valor. A tecnologia digital, com a sua promessa de instantaneidade, é a expressão máxima do Gestell, transformando cada aspeto da nossa vida num conjunto de operações a serem executadas com a maior rapidez possível.
A Serenidade Perante as Coisas
A análise de Heidegger é sombria, mas não é um convite ao desespero ou a uma rejeição ludita da tecnologia. Ele não propõe que abandonemos as nossas cidades e voltemos a viver no campo. O caminho que ele sugere é mais subtil e interno. Trata-se de cultivar uma nova postura perante o mundo e a técnica, uma postura que ele designa como Gelassenheit – um termo que pode ser traduzido como “serenidade”, “desapego” ou “deixar-ser”.
Gelassenheit implica dizer “sim” ao uso dos objetos técnicos, mas ao mesmo tempo dizer “não” à sua pretensão de dominar a totalidade da nossa existência. É usar o smartphone sem permitir que ele dite o ritmo da nossa consciência. É participar na economia digital sem reduzir o nosso valor humano a um perfil de dados. Trata-se de criar clareiras de não-utilidade no meio da floresta da eficiência.
Referências:
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
📘 Leitura Recomendada >>>

Esta é uma obra nova que contém a junção dos dois volumes anteriores. Este é um clássico do filósofo alemão Martin Heidegger, que continua sendo fundamental para aquele indivíduo que pretende conhecer e entender o ser humano de forma integral. A longa trajetória mental deste autor rendeu uma valiosa contribuição intelectual para a humanidade. “Ser e tempo” ultrapassa em muito uma simples obra de filosofia. Esta é uma edição elaborada pela Editora Vozes e a Editora Universitária São Francisco, que contém ainda um glossário em alemão-português, português-alemão.
Como Associado Amazon, ganhamos uma comissão com compras qualificadas, sem custo extra para você, e você ajuda as Vozes Atemporais.