A Coragem da Razão: Descartes e a Libertação do Pensamento

Em um tempo onde as fundações do conhecimento pareciam assentar-se sobre areias movediças de tradição e autoridade, a figura de René Descartes (1596-1650) emerge não apenas como um filósofo, mas como um arquiteto da mente moderna. Sua obra mais emblemática, o “Discurso do Método”, não é meramente um tratado filosófico; é um manifesto pela emancipação do intelecto, um guia para a reconstrução do saber sobre o alicerce sólido e inabalável da razão. Este ensaio propõe uma imersão na jornada cartesiana, explorando a demolição das velhas certezas, a edificação de um novo método, e, crucialmente, a aplicação dessa ferramenta atemporal a um dos mais persistentes dogmas da nossa era: o preconceito de gênero no seio de instituições como a Igreja.

A Insatisfação Radical: A Demolição do Edifício Herdado

Descartes inicia sua jornada a partir de uma profunda insatisfação. Ao contemplar o panorama da filosofia de seu tempo, ele a vê como um campo de batalha. “Vendo que fora cultivada pelos mais excelentes espíritos que viveram desde muitos séculos”, escreve ele, “e que não obstante não há nela coisa alguma sobre a qual não se dispute, e, portanto, que não seja duvidosa”. Essa percepção de um saber construído sobre disputas infindáveis, em vez de verdades concretas, o impulsiona a uma atitude radical. Ele se volta contra a filosofia escolástica, um sistema que, a seu ver, estava mais fundamentado na autoridade de filósofos passados, como Aristóteles, do que na lógica e na evidência.

A Escola de Atenas (1511), de Rafael. A celebração da filosofia clássica e da autoridade dos mestres — o grandioso edifício intelectual que Descartes ousou submeter ao teste radical da dúvida.

A crítica cartesiana era direcionada à aceitação passiva do “senso comum” e das “ideias que foram sedimentadas no nosso modo habitual de pensar”. Ele reconheceu que a tradição, o costume e a educação acrítica são fontes de “precipitação e prevenção” — ou seja, de conclusões apressadas e de preconceitos. Para construir algo verdadeiramente novo e duradouro, era preciso primeiro demolir a estrutura antiga e comprometida.

Essa demolição se dá pela via da dúvida metódica. Não se trata de um ceticismo paralisante, mas de uma ferramenta de purificação intelectual. Descartes propõe duvidar de tudo o que possa conter a menor incerteza: os testemunhos dos sentidos, que frequentemente nos enganam; a distinção entre sonho e vigília; e até mesmo as verdades matemáticas, pois um “gênio maligno” poderia estar nos iludindo. Ao levar a dúvida ao seu extremo hiperbólico, seu objetivo é encontrar um ponto de resistência, uma verdade tão fundamental que nem a dúvida mais radical pudesse abalar. Esse ponto, como se sabe, será o “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum), a primeira certeza sobre a qual o novo edifício do conhecimento será erguido.

Filósofo em Meditação (1632), de Rembrandt. A representação visual do Cogito: após duvidar de tudo, a única certeza emerge da luz interior da própria consciência.

Os Quatro Pilares do Método: A Arquitetura da Razão

Após limpar o terreno, Descartes apresenta seu projeto de reconstrução: um método de apenas quatro regras, mas de um poder imenso, inspirado na clareza e na certeza das demonstrações matemáticas. Essas regras são os pilares que devem guiar a razão na busca pela verdade em qualquer campo do saber.

1. A Regra da Evidência: “O primeiro era não aceitar jamais alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal”. Este é o portal de entrada para o conhecimento. A exigência é por clareza e distinção. Uma ideia é clara quando está presente e manifesta a um espírito atento. É distinta quando é tão precisa e diferente de todas as outras que não contém em si nada além do que é claro. Esta regra é um ataque frontal ao dogmatismo, que se baseia na aceitação por autoridade ou fé. Exige-se ver com os próprios olhos da razão, sem intermediários.

2. A Regra da Análise: “O segundo, dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas possíveis e que fossem necessárias para melhor resolvê-las”. Diante de um problema complexo, a estratégia é desmontá-lo em suas partes mais simples. Assim como um relojoeiro entende o mecanismo ao analisar cada engrenagem, a mente compreende o todo ao examinar suas unidades constituintes. A análise torna o que era assustador e impenetrável em algo manejável e claro.

A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632), de Rembrandt. A Regra da Análise em prática: a razão metódica disseca a complexidade para revelar o funcionamento de suas partes mais simples.

3. A Regra da Síntese (ou da Ordem): “O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir aos poucos, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos”. Esta é a fase da reconstrução lógica. Partindo das verdades simples e evidentes encontradas na análise, a razão deve encadeá-las em uma sequência rigorosa, onde cada passo se deduz do anterior, como nos longos raciocínios dos geômetras. Essa ordem garante que a complexidade final seja construída sobre uma base sólida e transparente.

4. A Regra da Enumeração: “E o último, fazer em toda parte enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir”. Esta é a garantia de qualidade do processo. Trata-se de uma verificação exaustiva de todos os passos da análise e da síntese para assegurar que nenhuma parte foi esquecida e que a cadeia dedutiva não possui elos faltantes. É a regra da diligência, que fecha o ciclo metodológico e confere segurança ao resultado.

Juntas, essas quatro regras formam um método universal que, segundo Descartes, poderia “estender-se para fazer brotar verdades a respeito de qualquer assunto”. Ele defendia uma revolução silenciosa: a ideia de que a razão, quando bem conduzida, é a ferramenta libertadora por excelência, capaz de nos livrar das mais diversas formas de dogmatismo e de nos guiar a um conhecimento seguro e autônomo.

O Astrônomo (1668), de Vermeer. O ideal do pensador metódico: a união de razão, ordem e observação na busca por um conhecimento claro e distinto do mundo.

O Método Cartesiano e o Dogma do Gênero na Igreja Contemporânea

À primeira vista, pode parecer um salto anacrônico aplicar o método de um filósofo do século XVII a uma questão social e religiosa do século XXI. Contudo, a força do pensamento cartesiano reside precisamente em sua atemporalidade como ferramenta contra o preconceito — a “prevenção”, em seus termos. O dogmatismo não é um fenômeno exclusivo da filosofia escolástica; ele se manifesta sempre que ideias são aceitas sem escrutínio, baseadas em tradição, autoridade ou costume, em vez de evidência racional.

A questão do preconceito de gênero em certas áreas da Igreja contemporânea oferece um campo fértil para a aplicação da dúvida metódica. As justificativas para a exclusão de mulheres de certas posições de liderança e sacerdócio frequentemente se apoiam em argumentos de tradição (“sempre foi assim”), interpretações escriturísticas consolidadas e estruturas de autoridade patriarcal. São precisamente estas “ideias sedimentadas” que Descartes nos convida a questionar.

Vamos submeter a questão ao método cartesiano, não como um ataque à fé, mas como um exercício de coerência e busca pela verdade dentro da própria lógica da razão, que Descartes considerava um dom divino:

Aplicação da Evidência: A primeira regra nos obriga a perguntar: a inferioridade ou a inadequação da mulher para certas funções sagradas é uma verdade clara e distinta? Ela se apresenta à razão com uma evidência inquestionável? Ou, ao contrário, ela é uma ideia complexa, carregada de séculos de cultura, preconceito e interpretações específicas que podem ser questionadas? A dúvida metódica exigiria suspender o juízo sobre a validade dessa exclusão até que sua necessidade se prove com a mesma certeza de uma verdade matemática. O cartesianismo implícito na obra de seguidores como Poulain de La Barre, que já no século XVII usava a razão para defender a igualdade entre os sexos, mostra que a própria filosofia cartesiana continha o germe dessa crítica.

Aplicação da Análise: A segunda regra nos compele a “dividir a dificuldade”. Devemos separar os argumentos. Quais são de natureza estritamente teológica? Quais são puramente históricos ou culturais? Quais se baseiam em interpretações da biologia que hoje são consideradas ultrapassadas? Ao decompor o dogma da exclusão, podemos descobrir que muitos de seus componentes não são verdades de fé eternas, mas artefatos de uma sociedade patriarcal que foram assimilados pela estrutura religiosa.

Autorretrato como Alegoria da Pintura (c. 1638), de Artemisia Gentileschi. A subversão do dogma pela evidência: a mulher não como objeto de representação, mas como sujeito da razão e da criação, encarnando a coragem intelectual contra o preconceito.

Aplicação da Síntese: Após a análise, a terceira regra nos instaria a reconstruir o pensamento a partir das verdades mais simples e fundamentais. Quais são os princípios mais básicos e evidentes da fé em questão? Conceitos como a criação de todos à imagem e semelhança de Deus, a dignidade inerente a cada pessoa e o mandamento do amor e da igualdade. Partindo destes “degraus” mais simples, a exclusão baseada em gênero pareceria uma conclusão lógica e necessária, ou uma contradição? A síntese cartesiana buscaria uma teologia dos ministérios que fluísse harmoniosamente desses princípios fundamentais, em vez de contradizê-los.

Aplicação da Enumeração: Por fim, a revisão completa nos levaria a examinar todas as passagens, argumentos, contra-argumentos e implicações. Teríamos que considerar as vozes das mulheres ao longo da história, os frutos positivos e negativos da exclusão, e o testemunho de outras tradições cristãs que adotaram a igualdade de gênero nos ministérios. Esta revisão geral garantiria que nossa conclusão não omitisse dados cruciais e não fosse fruto de uma análise parcial.

Descartes lutava por um mundo onde a fé não ditasse arbitrariamente as relações humanas, mas que ficasse confinada ao seu domínio próprio, sem invadir a esfera da razão e da justiça. Ao defender que a razão deveria permear todos os domínios da vida, ele propunha uma atividade libertadora. A afirmação cartesiana de que o “bom senso” (a capacidade de julgar e distinguir o verdadeiro do falso) é “a coisa do mundo melhor partilhada” é, em sua essência, uma afirmação de igualdade fundamental. Se a razão é universal, então não há fundamento a priori para declarar a razão de um gênero superior à de outro.

Um Legado de Coragem Intelectual

O “Discurso do Método” é muito mais do que um documento histórico; é um convite perene à coragem intelectual. A jornada de Descartes, da dúvida radical à reconstrução metódica, ensina-nos que o conhecimento genuíno exige trabalho, questionamento e a recusa em aceitar passivamente o que nos é dado. O dogmatismo, seja ele filosófico, religioso ou cultural, é o pior inimigo do pensamento.

Ao transpor sua metodologia para o debate sobre o preconceito de gênero na Igreja, não buscamos anular a fé com a razão, mas sim iluminar, com a própria razão, as sombras do preconceito que se escondem sob o manto da tradição. Mostramos que o método cartesiano, em sua busca incansável por clareza, distinção e certeza, é uma ferramenta poderosa para desmantelar qualquer ideologia que se sustente na “prevenção” em vez da evidência.

O legado de Descartes não é um conjunto de respostas prontas, mas sim um caminho. Um caminho que nos desafia a demolir as casas mal construídas de nossas próprias certezas, a limpar o terreno de nossos preconceitos e a construir, com a argamassa da razão e da honestidade intelectual, um edifício do saber mais sólido, mais justo e, em última análise, mais humano. É um chamado para que cada um de nós se torne o arquiteto consciente de seu próprio entendimento

Referencias:

Discurso do método / René Descartes; tradução de Paulo Neves. -Porto Alegre: L&PM, 2024.

Capa do Livro discurso do metodo

Discurso do método & Ensaios

Em outubro de 1637 é anonimamente publicada, com o título de “Discurso do método para bem conduzir a própria razão e procurar as verdades na ciência, mais A dióptrica, Os meteoros e A geometria que são ensaios desse método”, a primeira obra de Descartes, unanimemente considerada como um marco fundamental para o processo de constituição da ciência moderna.

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