Aleister Crowley: A Besta, o Profeta e a Lei da Liberdade

Faze o que tu queres há de ser o todo da lei.”

O amor é a lei, amor sob vontade.”

Poucas figuras do século XX provocam reações tão intensas quanto Aleister Crowley. Apelidado pela imprensa de sua época como “o homem mais perverso do mundo”, seu nome tornou-se sinônimo de magia negra, hedonismo e satanismo. No entanto, reduzir Crowley a essa caricatura é ignorar a complexidade de um homem que foi também um aclamado poeta, um alpinista de renome, um filósofo e um buscador espiritual incansável. Nascido em 1875, um ano crucial que viu a morte do grande ocultista Eliphas Lévi e a fundação da Sociedade Teosófica, Crowley emergiu como um profeta de uma nova era, cuja vida e obra desafiam rótulos fáceis. Este ensaio busca desvendar as camadas do mito, apresentando um retrato equilibrado de sua jornada e explorando a profundidade de sua obra-prima, O Livro da Lei, de uma forma didática e consciente.

A Origem da Besta: Repressão e Rebeldia

Para entender o homem, é preciso primeiro entender o menino. Edward Alexander Crowley nasceu no seio de uma família abastada e extremamente religiosa, pertencente aos Irmãos de Plymouth, um movimento cristão evangélico. A sua infância foi marcada por uma profunda adoração pelo pai, Edward, e uma aversão igualmente profunda pela mãe, Emily. Com a morte do pai em 1887, o jovem Crowley sentiu-se aprisionado pela fé que ele considerava “falsa e fanática” de sua mãe e tio.

Foi nesse ambiente de conflito que nasceu sua alcunha mais famosa. Frustrada com a rebeldia do filho, a mãe o chamava de “A Besta”, uma referência direta à figura do Apocalipse. Longe de se ofender, Crowley adotaria o epíteto com orgulho irónico anos mais tarde, transformando-o num símbolo de sua identidade mágica. Sua rejeição à figura materna foi tão intensa que ele mudou seu próprio nome de “Alexander” — e especialmente o apelido “Alick”, que ela usava — para a forma gaélica “Aleister”, num claro ato de dissociação. Essa rebelião inicial não era apenas um capricho juvenil, mas a fundação de uma vida dedicada a quebrar correntes, fossem elas sociais, religiosas ou psicológicas.

A Forja do Mago: De Cambridge à Aurora Dourada

A juventude de Crowley foi um período de intensa exploração intelectual e pessoal. Na Universidade de Cambridge, ele estudou filosofia e poesia, ao mesmo tempo em que se destacava em atividades que exigiam disciplina mental e física, como o xadrez e o alpinismo. Foi também em Cambridge que ele deu vazão à sua sexualidade, envolvendo-se com mulheres e homens — um ato ilegal e perigoso na época vitoriana.

Contudo, a carreira académica não era o seu destino. Tomou a decisão radical de deixar a universidade sem diploma para se dedicar integralmente ao ocultismo. Em 1898, foi iniciado na Ordem Hermética da Aurora Dourada (Hermetic Order of the Golden Dawn), uma das mais influentes sociedades secretas de seu tempo, que reunia pensadores esotéricos e artistas, como o poeta W. B. Yeats. Adotando o nome mágico de Frater Perdurabo (“Eu persistirei até o fim”), Crowley progrediu rapidamente, mas sua personalidade e sua proximidade com o líder, Samuel Mathers, geraram conflitos internos.

A sua passagem pela Aurora Dourada terminou em cisão e confronto. Após ser impedido de avançar para um círculo interno, ele foi a Paris e recebeu a iniciação diretamente de Mathers, o que dividiu a ordem. Mais tarde, rompeu definitivamente com o grupo ao publicar materiais considerados secretos, um ato que ele justificava como necessário para a transparência e a libertação do conhecimento.

A Revelação no Cairo: O Nascimento do Livro da Lei

O ponto de viragem da vida de Crowley, e de todo o esoterismo ocidental moderno, ocorreu em 1904, no Cairo. Ele estava em lua de mel com sua primeira esposa, Rose Edith Kelly, numa fase em que se encontrava desestimulado com o ocultismo. Rose, por sua vez, não tinha qualquer interesse ou conhecimento prévio sobre o tema. Foi então que o inesperado aconteceu.

Rose começou a entrar em leves transes, repetindo a frase enigmática: “Eles estão vindo para você”. Dias depois, ela afirmou que uma entidade divina, Hórus, o aguardava. Cético, Crowley decidiu testá-la. Levou-a ao Museu Boulaq e pediu que ela identificasse Hórus entre as inúmeras peças egípcias. Para sua total surpresa, Rose, que nada sabia de egiptologia, ignorou várias representações óbvias do deus e apontou, de longe, para uma estela funerária específica: a Estela de Ankh-ef-en-Khonsu. Ao se aproximar, Crowley notou o número de exibição da peça no museu: 666, o número da Besta que ele adotara como seu.

Convencido de que estava diante de um fenómeno genuíno, ele preparou-se para o contacto. Nos dias 8, 9 e 10 de abril, pontualmente entre o meio-dia e a uma da tarde, Crowley transcreveu uma mensagem ditada por uma entidade desencarnada que se apresentou como Aiwass. A voz, segundo ele, não tinha sotaque e falava diretamente em sua mente. O resultado foi um texto curto e denso de 220 versos: O Livro da Lei (Liber AL vel Legis).

A Lei de Thelema: “Faze o que tu queres”

A mensagem central do livro pode ser resumida em seu mais famoso (e mal compreendido) axioma:

“Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei”. Longe de ser um convite à libertinagem ou ao egoísmo, a “Lei de Thelema” (do grego para “Vontade”) é uma proposta de profunda responsabilidade espiritual. “Fazer o que se quer” refere-se à tarefa mais difícil e sagrada de um indivíduo: descobrir e realizar sua

Vontade Verdadeira, seu propósito único e autêntico no universo. É um conceito mais próximo da “individuação” de Carl Jung ou do “daimon” de Sócrates do que do hedonismo desenfreado.

O livro é estruturado em três capítulos, cada um narrado por uma divindade egípcia: Nuit (a deusa do espaço infinito e das possibilidades), Hadit (o ponto de consciência individual que experimenta essas possibilidades) e Ra-Hoor-Khuit (uma forma de Hórus, o deus da força e da ação, regente da nova era). Crowley se via como o profeta encarregado de anunciar este novo “Éon de Hórus”, uma era de liberdade individual e responsabilidade divina para a humanidade.

Crowley dedicou o resto de sua vida a viver e a divulgar esta lei. Fundou a Abadia de Thelema na Sicília, uma comunidade experimental onde os princípios do livro eram vividos na prática, através de rituais, arte e magia sexual. A experiência, contudo, foi marcada por controvérsias, falta de higiene e tragédias, como a morte de uma de suas filhas e de um discípulo, o que levou à sua expulsão da Itália.

Sua vida pessoal foi igualmente tumultuada, marcada pelo vício em heroína (inicialmente usada para tratar asma), dificuldades financeiras e relações intensas com suas parceiras mágicas, as “Mulheres Escarlates”. Ele morreu em 1947, pobre e doente, mas espiritualmente ativo até o fim.

O legado de Crowley está intrinsecamente ligado à natureza única do Livro da Lei. O próprio texto ordena que nem mesmo “o estilo de uma letra” seja alterado. Por isso, o livro preserva peculiaridades como inconsistências ortográficas, mudanças abruptas de pronomes e até palavras que não existem em inglês, como “abstruction”. Para Crowley, essas “falhas” não eram erros, mas cifras que escondiam mistérios cabalísticos profundos, a serem decifrados pelo estudante atento.

Aleister Crowley foi uma figura de contradições monumentais. Um “buscador radical” que emergiu da repressão religiosa para propor um caminho de libertação espiritual. Seus métodos eram chocantes e sua vida pessoal, desastrosa. Mas a sua filosofia, Thelema, oferece uma mensagem poderosa e positiva: a de que cada ser humano possui uma centelha divina e a tarefa sagrada de descobrir e viver sua Vontade Verdadeira, com coragem e responsabilidade. O homem pode ser controverso, mas a sua lei continua a ecoar como um chamado à autodescoberta e à liberdade interior.

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Referências:

O Livro da Lei: LIBER AL VEL LEGIS / Aleister Crowley. Tradução de Marina Della Valle e Fernando Pessoa. Prefácio de M. B. – São Paulo: Editora Campos, 2017. (Selo Chave). Titulo original: The Book of the Law.

Capa do Livro, O Livro da Lei

O Livro Da Lei

Faze o que tu queres, há de ser o todo da Lei”.
Esta frase, que é a base da Mágicka de Aleister Crowley, está n’O Livro da Lei. Escrito no Cairo, em abril de 1904, O Livro da Lei é a fonte e a chave para o pensamento do mais famoso mago do século XX. Sua influência se espalha por todo o ocultismo ocidental, do neopaganismo wicca à popularização de práticas espirituais como a yoga. Mas, além disso, espalha-se com muita força por toda a cultura popular ocidental.

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