Freud e Jung: Duas Chaves para os Mistérios do Sonho

Quem nunca acordou com a nítida sensação de que um sonho o queria dizer algo? Sejam as imagens da infância que persistem na memória ou as narrativas confusas da noite anterior, a pergunta é a mesma. Enquanto a ciência de outrora muitas vezes desdenhou os sonhos como meros “processos somáticos” inúteis, a humanidade sempre pressentiu que ali havia um significado oculto. Foi Sigmund Freud quem primeiro construiu uma ponte sobre esse abismo, propondo uma “técnica psicológica que torna possível interpretar os sonhos”. Com ele, e depois com seu mais brilhante discípulo, Carl Jung, a exploração do mundo onírico se tornou uma das mais fascinantes aventuras intelectuais do século XX.

Ambos viam os sonhos como a “via régia”, o caminho principal para o nosso inconsciente. No entanto, suas visões sobre a natureza, a função e a linguagem dos sonhos eram profundamente distintas. Freud nos entregou a chave para decifrar nosso passado; Jung nos ofereceu um mapa para navegar nosso futuro.

Em sua obra-prima, “A Interpretação dos Sonhos”, Sigmund Freud estabeleceu uma tese revolucionária: todo sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (recalcado). Muitas vezes, esse desejo tem suas raízes em nossa infância, a fonte mais rica de material para os sonhos. A função primordial do sonho seria, então, atuar como um “guardião do sono”. Ao satisfazer simbolicamente um estímulo, seja a sede, um barulho ou uma inquietação psíquica —, o sonho nos permite continuar dormindo.

Sigmund Freud

Mas se os sonhos são realizações de desejos, por que são tão estranhos e incompreensíveis? Freud explica que isso se deve a uma Censura psíquica. Desejos que consideramos imorais ou inaceitáveis são barrados pela nossa mente consciente. Para burlar esse guarda, o sonho precisa usar disfarces. O que lembramos ao acordar é apenas o Conteúdo Manifesto, uma fachada. O significado real, o desejo proibido, é o Conteúdo Latente. A conversão do latente em manifesto é o que Freud chamou de “Trabalho do Sonho” (Traumarbeit). Ele opera por meio de mecanismos específicos:

Condensação (Verdichtung): O sonho é “curto, insuficiente e lacônico” em comparação com a riqueza de seus pensamentos subjacentes. Múltiplas ideias, pessoas e sentimentos são comprimidos em uma única imagem. Uma figura em seu sonho pode, por exemplo, ter o nome de uma pessoa, mas as feições de uma segunda e os gestos de uma terceira, representando um elemento comum a todas elas.

Deslocamento (Verschiebung): É a principal ferramenta da censura. A intensidade emocional é deslocada de uma ideia importante para uma trivial. Por isso, um sonho sobre um grande conflito pode se manifestar através de uma preocupação aparentemente absurda com um detalhe insignificante do dia anterior.

Representação Visual: Pensamentos abstratos são traduzidos para a linguagem pictográfica do sonho. O sonho não articula “se… então…”, mas mostra uma cena como causa e outra como efeito.

Para Freud, interpretar um sonho é como decifrar um hieróglifo: um trabalho arqueológico que desvenda as camadas de distorção para encontrar o artefato original — o desejo recalcado que moldou nossa vida psíquica.

Carl Jung, em obras como “O Homem e Seus Símbolos” e em suas memórias, relata como, apesar de sua admiração inicial, sentiu que a teoria de Freud era restritiva. Para ele, o sonho não visava enganar ou esconder; era uma manifestação natural e espontânea da psique. Sua função primordial não era a realização de um desejo passado, mas a compensação de uma atitude consciente presente. O sonho busca o equilíbrio: se nossa vida consciente é excessivamente lógica, ele nos traz o caos e a emoção; se somos passivos, ele nos mostra imagens de ação. O sonho é, portanto, prospectivo: ele aponta para o futuro, servindo como guia no processo de individuação, a jornada para a autorrealização. A grande ruptura de Jung com Freud veio de sua concepção do inconsciente. Ele postulou que, abaixo do inconsciente pessoal (composto por nossas memórias e complexos), existe uma camada mais profunda, partilhada por toda a humanidade: o inconsciente coletivo. Este não contém memórias, mas sim arquétipos: padrões universais e primordiais de imagens e comportamentos. Figuras como o Herói, a Sombra, o Velho Sábio e a Grande Mãe são manifestações desses arquétipos.

Essa visão transforma a natureza do símbolo. Para Jung, um símbolo não é um mero disfarce para algo reprimido. Pelo contrário, é a “melhor expressão possível para algo relativamente desconhecido”. Ele não esconde, ele revela. Assim, em vez da associação livre de Freud, que reconduz ao complexo pessoal, Jung propôs à amplificação: conectar o símbolo do sonho aos grandes mitos, contos de fadas e rituais da humanidade para entender sua mensagem arquetípica e universal para o sonhador.

Carl Gustav Jung

Em “Memórias, Sonhos, Reflexões”, Jung narra um sonho decisivo que ilustra sua ruptura. Ele sonhou que estava numa casa com vários andares. O andar de cima era rococó (século XVIII), o térreo era medieval (século XV/XVI), a adega era romana e, abaixo dela, uma caverna pré-histórica continha crânios e cerâmicas. Para Freud, os crânios só poderiam indicar um desejo de morte reprimido. Para Jung, o sonho era um “diagrama estrutural da alma humana”: uma imagem da consciência (andar superior) apoiada em camadas cada vez mais antigas e universais da psique, culminando nas nossas origens primitivas no inconsciente coletivo.

Para ilustrar essa diferença na prática, imaginemos um sonho comum:

“Sonhei que tentava escalar uma montanha íngreme. Eu escorregava e sentia que não conseguia sair do lugar, o que me causava angústia. No topo da montanha, havia uma flor rara e luminosa.”

A interpretação freudiana, veria na sensação de não conseguir se mover (Bewegungshemmung) um conflito de vontades: um desejo contraposto por uma proibição. A montanha, por sua forma, seria um símbolo do pai ou de uma grande ambição. A flor no topo seria o “prêmio”, o objeto do desejo reprimido — a mãe, uma conquista amorosa ou profissional. A angústia do sonho não viria da escalada em si, mas da energia libidinal ligada a esse desejo que, sendo recalcado, se transforma em angústia. A interpretação buscaria no passado do sonhador o conflito infantil que gerou esse padrão de desejo e inibição.

A interpretação junguiana, por outro lado, veria a montanha como um arquétipo do Self, a totalidade. A escalada é a jornada da individuação. A dificuldade e a angústia não são sintomas de uma neurose, mas uma mensagem compensatória que diz: “o caminho para o autoconhecimento é árduo e você não pode subestimá-lo”. A flor no topo é um símbolo de mandala, representando a meta da jornada: a união dos opostos, a totalidade, a “flor de ouro” da consciência. O sonho não aponta para um trauma passado, mas para a tarefa presente e futura do sonhador em sua busca por crescimento e sentido.

Freud nos ensinou a decifrar as cicatrizes do passado gravadas em nossos sonhos. Jung nos ensinou a ler neles o mapa de nossa jornada à frente. Um nos deu a arqueologia da alma; o outro, sua cosmologia. Ambos, com suas chaves distintas, abriram a mesma porta, nos dando a mais importante das permissões: a de levar a sério as vozes atemporais que falam conosco na quietude da noite.

A Interpretação dos Sonhos", de Sigmund Freud, é uma obra seminal que introduz a psicanálise e explora a relação entre sonhos e o inconsciente.

A Interpretação dos Sonhos – Edição de Luxo Almofadada

Em “A Interpretação dos Sonhos”, Freud explora a complexa relação entre os sonhos e o inconsciente, revelando como nossos sonhos refletem desejos, medos e conflitos internos.
Este texto seminal da psicologia moderna convida os leitores a mergulharem nas profundezas de suas mentes para entender melhor a si mesmos através dos sonhos.
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Danielle
Danielle
1 mês atrás

Excelente artigo, muito esclarecedor. Para mim, os sonhos são uma forma de conexão com o nosso eu mais profundo, são uma resposta para algo que esta dentro de nós, latente no inconsciente.

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