A Frequência da Alma: Anatomia de um Grito Existencial

A paisagem se contorce em ondas de cor febril, o céu pulsa em tons de sangue e o som parece ter adquirido forma. No centro de tudo, uma figura andrógina, de crânio descarnado, leva as mãos ao rosto e emite um grito silencioso que ondula por toda a existência. O Grito de Edvard Munch é mais do que uma pintura; é o hieróglifo da angústia moderna, o emblema de uma alma confrontada com um terror que não pode nomear. Mas, se olharmos para além da agonia imediata, o que essa obra realmente representa? Talvez este não seja o som do fim, mas o som primal e inadiável de todo verdadeiro começo: o grito que rasga o véu da normalidade e anuncia que o mundo, como o conhecíamos, acabou.

Todo início fundamental é uma ruptura. O exemplo mais puro e visceral é o primeiro choro de um recém-nascido. Esse grito agudo, que corta o silêncio do mundo, é a declaração inaugural da existência individual. É a manifestação sonora de ser “jogado no mundo”, como diriam os existencialistas; a passagem brutal da unidade inconsciente do ventre para a condição de um ser separado, que respira, sente e, inevitavelmente, sofrerá. Não é um som articulado, mas uma pura expressão da força vital confrontada pela primeira vez com a alteridade, com o frio, com o ar. Este berro primal é a raiz de todo impulso criador, a força que antecede a palavra e a razão, o motor fundamental que nos impele a deixar uma marca no silêncio.

Se o choro do bebê é o arquétipo biológico do início, a mitologia nos oferece sua contraparte simbólica no que o estudioso Joseph Campbell imortalizou como o “Chamado à Aventura”. Na estrutura universal da Jornada do Herói, o mundo comum e previsível do protagonista é sempre interrompido por um evento que funciona como um grito existencial. É o momento em que a realidade bate à porta e exige uma resposta. Pode ser o chamado de Gandalf para um hobbit pacato, a visão de uma injustiça que inflama o coração, ou o grito silencioso da própria insatisfação interior que torna a rotina insuportável. Esse chamado, como o grito de Munch, é profundamente desconfortável. Ele nos arranca da segurança e nos apresenta ao limiar do desconhecido. A hesitação inicial do herói, sua recusa do chamado, é a reação natural ao pavor desse abismo que se abre. O chamado é, portanto, o grito que nos força a encarar a necessidade de transcendência.

A filosofia existencialista deu o nome mais preciso a essa experiência: Angst, a angústia. Diferente do medo, que tem um objeto definido, a angústia é a vertigem que sentimos ao confrontar nossa própria liberdade radical. É o que sentimos ao perceber que não há um roteiro divino ou um caminho pré-definido, e que somos condenados a criar nosso próprio sentido a cada escolha. O grito de Munch é a face dessa angústia. É o som da alma no instante em que o chão desaparece, quando as ilusões de segurança e propósito se desfazem e resta apenas o indivíduo, nu, diante do infinito de suas possibilidades e da esmagadora responsabilidade que isso acarreta.

Assim, o grito não é apenas o anúncio de um novo mundo, mas a própria condição para que ele possa ser criado. É o som do caos primordial que Nietzsche dizia ser necessário para “dar à luz uma estrela cintilante”. É na fenda aberta por essa ruptura existencial que a verdadeira ação se torna possível. Antes do “Eu quero” determinado do leão de Zaratustra, antes do primeiro passo na jornada de individuação de Jung, há um confronto visceral com o vazio, um reconhecimento da necessidade de ir além. Seja o choro primal do nascimento, o chamado mítico para a aventura ou a vertigem da liberdade existencial, o grito é o eco do desconhecido que nos convida, não ao desespero, mas à corajosa e terrível tarefa de criar.

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