Para Além do Véu de Maia: Vontade, Sofrimento e Redenção na Filosofia de Schopenhauer
Em meio aos grandes sistemas otimistas da filosofia alemã, a voz de Arthur Schopenhauer soou como uma dissonância profunda e melancólica, um pensamento que se atreveu a encarar a existência não como um progresso glorioso, mas como um erro fundamental. Em sua obra-prima, O Mundo como Vontade e Representação, ele oferece um diagnóstico radical da condição humana, argumentando que a realidade possui duas faces: uma ilusória, que percebemos como nosso mundo, e outra real, uma força cega e atormentada que é a fonte de todo o nosso sofrimento.

Para Schopenhauer, o mundo que nos cerca, com suas formas, cores e leis, não é a verdade última. É o mundo como representação, uma projeção da nossa mente, governada pelas lentes do tempo, do espaço e da causalidade. Como em um sonho, somos cativos de um espetáculo fenomênico que tomamos por real, envoltos no que a sabedoria hindu chamou de Véu de Maia. Este véu esconde a essência do real, a coisa-em-si, que para Schopenhauer não é racional nem divina, mas sim um impulso primordial, único e irracional: a Vontade.
A Vontade é o coração pulsante do universo. É uma força cega que anseia, deseja e se esforça incessantemente, sem propósito ou fim. Ela se manifesta na força da gravidade, no crescimento de uma planta e, mais diretamente para nós, no fluxo contínuo dos nossos próprios desejos, medos e paixões. Temos uma janela privilegiada para essa realidade através do nosso corpo, que não é apenas um objeto no espaço (representação), mas a própria manifestação da Vontade que sentimos de dentro. E é aqui que reside a tragédia: se a essência de tudo é um querer insaciável, então a vida, por definição, é sofrimento. Somos escravos de uma vontade que nunca se satisfaz. A existência oscila, como um pêndulo, entre a dor e o tédio. A dor é o desejo não realizado; o tédio é a breve e vazia calmaria que se segue à sua realização, logo substituída por um novo querer.

É possível escapar desta prisão? Schopenhauer, apesar de seu profundo pessimismo, aponta dois caminhos para a redenção. O primeiro é uma libertação temporária encontrada na contemplação da arte. Ao nos perdermos na beleza de uma pintura, uma escultura ou, acima de tudo, uma sinfonia, nosso intelecto se desliga da nossa vontade individual. Deixamos de ser um sujeito que deseja e nos tornamos um “puro sujeito do conhecimento”, contemplando as Ideias eternas por trás do mundo fenomênico. A música, para ele, é a arte suprema, pois ela não é uma cópia das Ideias, mas uma cópia da própria Vontade, expressando em sua linguagem universal a alegria e a dor da existência.
O segundo caminho é mais raro e definitivo: a negação ascética da Vontade. Ao reconhecer a natureza fútil e dolorosa do querer, o indivíduo pode, através de uma profunda compaixão por todos os seres que compartilham do mesmo sofrimento, e por meio de práticas como a castidade e a renúncia, deliberadamente silenciar em si o “querer-viver”. Este ato de negação não leva ao nada, mas a um estado de paz e tranquilidade que as religiões orientais, admiradas por Schopenhauer, chamariam de Nirvana. É a vitória final sobre o ciclo de dor, a paz encontrada não na satisfação da Vontade, mas em sua completa quietude. Assim, o filósofo do pessimismo nos deixa um legado paradoxal: um diagnóstico sombrio da existência que serve como o mais poderoso argumento para a compaixão e para a busca de uma redenção que só pode ser encontrada para além do querer.
Referência
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. Tomo I. Tradução, prefácio, notas e índices de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.