John_William_Waterhouse_-_Magic_Circle

Stregoneria vs. Stregheria: Entenda a Bruxaria Italiana

Imagine o crepúsculo caindo sobre uma aldeia aninhada nas colinas da Toscana. Uma avó, com os dedos nodosos pelo trabalho de uma vida, murmura uma oração secreta, fazendo um gesto rápido sobre a cabeça de um neto para afastar o malocchio, o mau-olhado lançado pela inveja de um vizinho. Seu gesto é um amálgama de fé e costume, uma herança sussurrada que não se encontra em livros sagrados, mas que pulsa no sangue da terra. Agora, atravesse um oceano e um século. Imagine uma jovem em um subúrbio de Chicago, descendente de imigrantes daquela mesma região. Ela acende velas em um altar cuidadosamente arranjado, invoca o nome de Diana e traça um círculo mágico no chão, seguindo rituais de um livro que proclama restaurar La Vecchia Religione, a Velha Religião de seus ancestrais.

Entre a prece silenciosa da avó e o ritual codificado da neta reside um abismo e uma ponte. É nesse espaço que se desenrola a complexa, e muitas vezes mal compreendida, história da bruxaria italiana. Para navegar por este terreno, é preciso, antes de tudo, dominar a gramática do próprio fenômeno, começando por uma distinção crucial: a diferença entre stregoneria e Stregheria. A primeira, a stregoneria, é o vasto e vernacular oceano do folclore – um compêndio de práticas de cura, magia amorosa, adivinhação e crenças sobre espíritos que permeou a vida italiana por séculos, sendo mais tarde violentamente reinterpretado e criminalizado pela demonologia inquisitorial. A segunda, a Stregheria, é um termo arcaico reapropriado no século XX, notadamente pelo autor ítalo-americano Raven Grimassi, para designar um sistema religioso neopagão moderno, com sua teologia, panteão e rituais estruturados.

A jornada que propomos aqui é uma desconstrução crítica. Argumentamos que a Stregheria contemporânea não representa a sobrevivência linear e ininterrupta de uma antiga fé pagã, mas sim o que o historiador Eric Hobsbawm chamaria de uma “tradição inventada”. De forma mais precisa, seguindo a antropóloga Sabina Magliocco, ela é um poderoso ato de “reclamação folclórica”: um processo pelo qual uma comunidade moderna, especialmente na diáspora, seleciona, reinterpreta e sistematiza fragmentos do passado para forjar uma identidade religiosa que responda às suas necessidades espirituais e étnicas presentes. Esta não é a história de uma religião perdida e encontrada, mas a crônica fascinante de como o passado é continuamente reinventado para dar sentido ao futuro.

As Raízes Profundas: Das Feras Noturnas à Magia do Cotidiano

Para entender a bruxa italiana, devemos primeiro escavar as camadas da imaginação clássica. Antes de ser uma herege em pacto com o Diabo, ela era a strix, uma criatura da noite romana, um horror que assombrava a literatura de Plínio e Horácio. A strix não era humana; era um monstro, uma mulher metamorfoseada em ave de rapina que sugava o sangue de bebês em seus berços. Seus atributos – o voo noturno, a metamorfose, a natureza predatória – formaram um substrato cultural duradouro, uma memória arquetípica que se fundiria, séculos mais tarde, na imagem da bruxa medieval.

Com o esfacelar do Império e a ascensão do Cristianismo, este substrato clássico não desapareceu; ele se misturou a crenças germânicas e eslavas, e foi gradualmente enquadrado pela nascente demonologia cristã. No entanto, longe dos tratados teológicos, a vida do povo comum desenrolava-se em um mundo permeado por uma magia pragmática e vernacular. Os registros inquisitoriais, embora distorcidos pela lente da perseguição, são uma janela para este universo. Revelam a onipresença da magia amorosa, das legature (feitiços para “amarrar” um amante) e das fatture (feitiços que usavam cabelos, unhas ou fluidos corporais). Mostram a popularidade de rituais de adivinhação, como o incantesimo della caraffa, onde se invocava um “Anjo Branco, Anjo Negro” para revelar um ladrão na superfície da água. E, acima de tudo, evidenciam a crença universal no malocchio, o mau-olhado, força motriz de inúmeras acusações em sociedades agrárias onde a prosperidade de um era vista como uma potencial ameaça à do outro.

Para o povo, essas práticas não eram heresia, mas ferramentas de sobrevivência, integradas a uma religiosidade popular sincrética. O “crime” da bruxaria foi, em grande medida, uma invenção da elite letrada, um ato de tradução cultural forçada. A Inquisição arrancou essas práticas de seu contexto social e as reinterpretou sob a ótica do pacto demoníaco, transformando o curandeiro da aldeia em um servo de Satanás.

O Grito dos Benandanti: Quando os Defensores se Tornam Bruxos

A história da Inquisição na Itália é uma “anomalia”. Comparada aos pânicos em massa que incendiaram a Alemanha e a Suíça, a Inquisição Romana agiu com uma surpreendente contenção processual. Essa moderação, contudo, não impediu uma das mais trágicas transformações culturais já documentadas, revelada na obra seminal de Carlo Ginzburg, Os Andarilhos do Bem (I Benandanti).

Nos arquivos do Friuli, Ginzburg descobriu os julgamentos de um culto agrário único. Os benandanti, homens e mulheres nascidos “com a touca” (envoltos na membrana amniótica), acreditavam que, em certas noites do ano, seus espíritos saíam em transe para lutar batalhas noturnas. Armados com ramos de funcho, eles combatiam bruxos e bruxas malévolos, armados com talos de sorgo. O destino das colheitas do ano dependia do resultado dessas batalhas. Eles não eram bruxos; eram os “anti-bruxos”, os defensores de suas comunidades.

O que se seguiu foi o que Ginzburg descreveu como um “choque entre duas visões de mundo”. Os inquisidores, incapazes de conceber um “sabbat benigno”, ouviram os relatos de viagens em espírito e assembleias noturnas e os encaixaram à força no único molde que conheciam: o Sabbat diabólico. Através de décadas de interrogatórios, sugestões e pressão psicológica, eles forçaram os benandanti a redefinir sua própria identidade. A batalha pela fertilidade foi gradualmente distorcida em uma orgia de adoração a Satanás. No final, esgotados e confusos, aqueles que se viam como soldados de Cristo confessaram ser bruxos. A sua cosmologia foi aniquilada e substituída pela de seus acusadores. O caso dos benandanti revela de forma pungente que a bruxa histórica não foi simplesmente “caçada”, mas muitas vezes “construída” no próprio ato do julgamento, em um diálogo assimétrico e coercitivo entre a cultura popular e o poder institucional.

O Evangelho Romântico e a Conexão Wiccaniana

Com o Iluminismo, a bruxa migrou da sala do tribunal para as páginas do folclore. O século XIX, com seu fervor romântico e nacionalista, viu o campesinato como um museu vivo de “sobrevivências” pagãs. Foi neste clima que Charles Godfrey Leland, um folclorista americano na Toscana, publicou em 1899 uma obra que, embora obscura em sua época, mudaria o curso da espiritualidade moderna: Aradia, ou o Evangelho das Bruxas.

Leland afirmou ter recebido de uma informante, Maddalena, um manuscrito que detalhava a mitologia e os rituais de La Vecchia Religione. Sua heroína, Aradia, filha da deusa Diana, é enviada à Terra para ensinar a bruxaria aos pobres como uma arma de resistência contra a Igreja e a nobreza. A autenticidade do texto é, até hoje, objeto de intenso debate. Foi um documento genuíno? Uma elaboração de Maddalena? Ou uma fraude literária de Leland?

A maioria dos acadêmicos hoje concorda que Aradia não representa uma tradição ininterrupta, mas sua importância histórica reside em sua recepção. Por meio século, o livro permaneceu uma curiosidade. Então, nos anos 1950, foi redescoberto por Gerald Gardner e os pioneiros da Wicca na Grã-Bretanha. Para eles, Aradia foi uma revelação, a “prova” textual de que uma religião de bruxaria pagã havia de fato sobrevivido na Europa. Passagens inteiras do discurso de Aradia foram adaptadas e se tornaram o cerne de um dos mais belos textos litúrgicos da Wicca, “A Invocação da Deusa”. De um documento etnográfico questionável, Aradia foi transfigurada em um texto sagrado, um elo – real ou imaginado – com um passado pagão que a nova religião ansiava por reclamar.

Stregheria: A Velha Religião Nasce no Novo Mundo

O palco para o nascimento da Stregheria como a conhecemos hoje não foram as aldeias da Itália, mas as cidades e subúrbios dos Estados Unidos. Foi aqui, entre a diáspora ítalo-americana, que a semente plantada por Leland finalmente floresceu, cultivada por Raven Grimassi. A partir dos anos 1980, Grimassi publicou uma série de livros que codificaram um sistema religioso completo, com um panteão (Diana e Dianus), um calendário de festivais e um corpo de rituais.

Apesar de Grimassi reivindicar uma linhagem familiar secreta, uma análise de seu sistema revela uma criação moderna e sincrética. Como observa Sabina Magliocco, a Stregheria é, em essência, “uma religião semelhante à Wicca em estrutura e prática, com um sabor italiano”. O duoteísmo Deusa-Deus, o círculo mágico, o altar voltado para o norte – a estrutura é inegavelmente wiccaniana. O que a torna distinta é sua roupagem cultural: nomes italianos, referências etruscas e a incorporação de elementos do folclore.

Sua popularidade na diáspora não é acidental. Para muitos ítalo-americanos, especialmente de segunda e terceira geração, a Stregheria ofereceu uma solução para uma profunda ambivalência étnica e espiritual. As práticas folclóricas de seus avós, profundamente sincréticas com o catolicismo popular, haviam sido estigmatizadas como “superstição” tanto pela cultura protestante dominante quanto pela própria Igreja Católica. A Stregheria de Grimassi permitiu-lhes reivindicar uma herança italiana que era, ao mesmo tempo, “autêntica” e orgulhosamente pagã, distinta tanto do catolicismo de seus pais quanto do mainstream americano. Foi um ato de “reclamação folclórica”: fragmentos do folclore foram “purificados” de sua influência católica, organizados sob um modelo religioso moderno (Wicca) e apresentados como a verdadeira e antiga fé da Itália.

O Eco Transatlântico: Um Ciclo de Reinvenção

Enquanto a Stregheria se consolidava na América, as tradições vernaculares na Itália persistiam. Pesquisas etnográficas recentes, como as de Angela Puca, documentam a sobrevivência de práticas de cura como a Segnature, um sistema de gestos e orações secretas, profundamente católico em sua cosmovisão, usado para curar o malocchio e outras aflições. Seus praticantes não se veem como pagãos; eles operam dentro da estrutura da fé popular.

No entanto, vivemos em uma era de fluxos culturais globais. A Stregheria ítalo-americana, exportada de volta para a Itália através de livros e da internet, está agora influenciando as próprias tradições das quais se inspirou. Jovens italianos em busca de espiritualidades alternativas encontram-se na confluência de dois mundos: as práticas sussurradas de seus avós e o neopaganismo estruturado vindo da América. O resultado é uma nova síntese. A palavra strega – historicamente um insulto terrível, “pior que prostituta”, como disse uma informante a Puca – está sendo reivindicada e higienizada, transformada em um emblema de poder e conexão com a natureza, espelhando a recuperação da palavra “witch” no mundo anglófono.

Assistimos, assim, a um fascinante “loop de retroalimentação transatlântico”. O folclore italiano viaja para a América, onde é transformado em uma religião neopagã. Esta religião é, então, reimportada para a Itália, onde fornece uma nova linguagem e uma nova estrutura para jovens praticantes reinterpretarem e sistematizarem suas próprias tradições locais.

A jornada da bruxa italiana – da strix monstruosa à strega neopagã – é uma lição sobre a natureza da tradição. Ela nos mostra que a Stregheria moderna não é uma relíquia imaculada do passado, mas um testemunho vibrante da capacidade humana de negociar com a história, de tecer novos significados a partir de fios antigos. A narrativa de uma linhagem ininterrupta, embora historicamente insustentável, não é uma mentira, mas um mito fundacional. Sua função não é descrever o passado com precisão factual, mas criar um sentimento de autenticidade e pertencimento no presente.

Descartar a Stregheria como “inautêntica” seria perder de vista o ponto essencial. Ela é um sistema religioso genuíno e poderoso precisamente porque é uma criação moderna, nascida da alienação, da busca por raízes e do desejo de dar uma nova voz aos sussurros do passado. Entre a avó na Toscana e a neta em Chicago, a linha não foi de continuidade, mas de ruptura, anseio e, finalmente, uma audaciosa e criativa reinvenção. A tradição, afinal, não é aquilo que herdamos passivamente, mas aquilo que, com coragem e imaginação, escolhemos reivindicar.


Meu Novo Livro

Newsletter Form (#6)

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba no seu e-mail reflexões filosóficas, ensaios e pensamentos atemporais do blog Vozes Atemporais. Um espaço de leitura que atravessa a modernidade e convida à contemplação.


Posts Similares

0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest
0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários